Relatos de predação de primatas são escassos na literatura primatológica em decorrência, principalmente, das dificuldades de registrar eventos rápidos e raros (Urbani, 2005) e por que muitas observações ocorrem durante estudos com enfoque nos predadores ao invés das presas (Ferrari, 2009). Dentre os animais que consomem primatas podemos destacar os rapinantes, carnívoros de médio e grande porte, outros primatas e répteis (Ford e Boinski, 2007; Ferrari, 2009; Bianchi et al., 2010; Quintino e Bicca-Marques, 2013). A predação de primatas por felinos selvagens tem sido amplamente reportada (Calleia et al., 2009). Leopardus pardalis Linnaeus, 1758 é o felino que apresenta o maior número de estudos relacionado à sua dieta, embora dados oriundos de populações da Mata Atlântica brasileira sejam escassos (Bianchi et al., 2010). Estudos têm sugerido uma relação entre o tamanho do corpo da presa e o do predador (Calleia et al., 2009). Para L. pardalis tem sido reportado principalmente o consumo de pequenos mamíferos (até 2 kg), cuja frequência varia em resposta à abundância local das presas (Bisbal, 1986; Emmons, 1987). Contudo, este felino pode se alimentar esporadicamente de presas de maior porte (Konecny, 1989; Meza et al., 2002), como os bugios (Alouatta sp.) (Peetz et al., 1992; Miranda et al., 2006; Bianchi et al., 2010), seja via predação ou necrofagia (Crawshaw, 1995; Meza et al., 2002).
O presente estudo reporta o consumo de A. guariba clamitans por L. pardalis na Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) Floresta da Cicuta (ca. 131 ha, 22°24′-22°38′S, 44°09′- 44°20′O, 300 - 500 m a.n.m.m.; Monsores et al., 1982), uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável localizada nos municípios de Barra Mansa e Volta Redonda, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. A região possui clima mesotérmico (Cwa), com inverno seco e verão quente e chuvoso, com elevados índices de umidade relativa do ar (Monsores et al., 1982). A ARIE está inserida na Floresta Estacional Semidecidual Submontana (IBGE, 1992) e é circundada por matas em estágio inicial ou médio de sucessão, antigos plantios de Eucalyptus spp. e pastagens (Alves e Zaú, 2005). A ARIE é habitada por cerca de 26 grupos de bugios-ruivos e uma população estimada em cerca de 150 indivíduos, sendo considerada uma das últimas populações do Vale do Paraíba do Estado do Rio de Janeiro (Alves e Zaú, 2005).
No dia 12/12/2012 foram encontradas fezes frescas de carnívoro (Fig. 1) em uma trilha permanente da ARIE. As fezes foram coletadas, acondicionadas em saco plástico e triadas para a realização de microscopia dos pelos-guarda em laboratório seguindo o protocolo de Quadros et al. (2006). Foram identificados pelos dos mamíferos Leopardus pardalis, Alouatta guariba clamitans e Akodon cursor Winge, 1887 (Fig. 2) com base em chaves dicotômicas de pelos (Ingberman e Monteiro-Filho, 2006; Vanstreels et al., 2010; Silveira et al., 2013).
Bianchi e Mendes (2007) reportam uma grande importância de A. guariba clamitans na dieta de L. pardalis na Estação Biológica de Caratinga (EBC; atualmente, Reserva Particular do Patrimônio Natural Feliciano Miguel Abdala) no Estado de Minas Gerais, Brasil. Segundo Bianchi et al. (2010), a elevada taxa de predação de bugios na EBC pode estar relacionada à sua alta densidade. A grande abundância em florestas alteradas pelo homem é uma característica populacional conhecida de Alouatta spp. (Ferrari, 2009), cenário este compatível com o encontrado na EBC por Bianchi e Mendes (2007) e na área do presente estudo. Crawshaw (1995) e Meza et al. (2002) reportaram o consumo de carniça por jaguatiricas por considerarem que espécies de mamíferos de maior porte são consumidas apenas ocasionalmente (e. g., quando atropeladas). A distinção entre predação e necrofagia tem sido realizada com base na presença/ausência de larvas e pupas de moscas nas amostras fecais. Sua presença tem sido relacionada ao fato de as moscas poderem ovipositar poucos minutos após a morte do animal, embora a colonização das larvas dependa das condições climáticas (Smith, 1986). A confiabilidade desta evidência, no entanto, é comprometida quando o predador consome a carcaça logo após a morte do indivíduo e quando as fezes do predador contêm larvas e pupas de dípteros coprófagos (e.g., McAlpine et al., 1987; Francesconi e Lupi, 2012). A amostra fecal analisada no presente estudo estava fresca e continha muco, além de sinais de urina nas suas imediações (Fig. 1). Á semelhança do registrado por Miranda et al. (2006), não foram observadas larvas ou pupas de moscas.
O consumo de A. guariba clamitans do presente relato pode estar relacionado a uma combinação de quatro fatores: (i) pequeno tamanho e (ii) isolamento da Unidade de Conservação, (iii) alta densidade de A. guariba clamitans e (iv) plasticidade alimentar de L. pardalis. Os dados disponíveis, no entanto, não permitem descartar a hipótese de se tratar de um caso de predação oportunística (Miranda et al., 2006), cujo impacto na população de bugios-ruivos seria, provavelmente, insignificante. Por fim, o uso experimental de armadilhas fotográficas para monitorar o destino e os consumidores de carniça de primatas (e.g., Huang et al., 2014), aliado a análises dos pelos encontrados nas fezes de predadores, possui grande potencial para elucidar a relação entre os primatas e seus potenciais predadores.
Agradecimentos
Ao Felipe Sardella e ao José Henrique de Oliveira pela ajuda na logística do trabalho de campo. À Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) pelo apoio na realização deste trabalho. Ao Centro Brasileiro para Conservação dos Felinos Neotropicais por disponibilizar amostras de pelos para comparação. Ayesha Ribeiro Pedrozo e Theany Biavatti agradecem à CAPES pela bolsa de Mestrado. William Douglas de Carvalho agradece à CAPES pela bolsa de Doutorado. Carlos E. L. Esbérard agradece ao CNPq pela bolsa de Produtividade em Pesquisa e à FAPERJ pela bolsa de Jovem Cientista do Nosso Estado. Ao editor Júlio César Bicca-Marques pelas sugestões no texto. Este trabalho foi realizado sob a licença especial para coleta SISBIO 10356-2.