Introdução
O primeiro registro de S. flavius foi realizado por Marcgrave (1648). Posteriormente, Schreber (1774) denominou o táxon como Simia flavia. Hershkovitz (1949) sugeriu que S. flavia era inidentificável e, mais tarde, o considerou sinônimo de Cebus (Sapajus) libidinosus (Hershkovitz, 1987). Entretanto, Oliveira e Langguth (2006), determinaram que Simia flavia era um táxon válido, atualmente reconhecido como Sapajus flavius (Lynch Alfaro et al., 2012). Igualmente citado por Marcgrave (1648), Alouatta belzebul apresenta distribuição disjunta, com uma população amazónica e outra restrita ao norte da Mata Atlântica (Bonvicino et al., 1989; Gregorin, 2006). Estas espécies compartilham grande parte de sua distribuição na região que corresponde ao Centro de Endemismo Pernambuco (CEP), o qual inclui todas as florestas entre os estados do Rio Grande do Norte e Alagoas e que, comparado a outros setores da Mata Atlântica, é o mais desmatado e o menos conhecido e protegido em unidades de conservação (Silva e Tabarelli, 2001). O primeiro levantamento da situação dos primatas na Paraíba, com destaque para A. belzebul, foi realizado há cerca de 20 anos (Oliveira e Oliveira, 1993). Recentemente, Feijó e Langguth (2013) compilaram os registros de coleções científicas.
Sapajus flavius é categorizado como Criticamente Em Perigo na Lista Vermelha da IUCN de 2010 (Oliveira et al., 2008), enquanto Alouatta belzebul consta como Vulnerável (Veiga et al., 2008). Embora não constem na Lista Oficial das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção (MMA, 2003), considerando a fragmentação e a perda de 93% da cobertura original da Mata Atlântica ao norte do Rio São Francisco (Tabarelli et al., 2005), torna-se plausível especular sobre um alto risco de extinção para S. flavius e para as populações de A. belzebul desta área de sua distribuição. Desta forma, este trabalho visou revisar as áreas de ocorrência dessas espécies no CEP.
Material e Métodos
Três espécies de primatas autóctones são encontradas no CEP: S. flavius, A. belzebul e Callithrix jacchus. A última está amplamente distribuída na região, com ocorrência, inclusive, em áreas urbanas. Para as duas primeiras foram compilados os registros de presença disponíveis na literatura e em material não-publicado de colaboradores (e.g., fotografias) e de levantamentos realizados entre 2006 e 2009 em fragmentos florestais na área entre os paralelos 5°20′ e 10°10′S. Equipes compostas por dois a três pesquisadores realizaram oito expedições, totalizando 30 dias de amostragem, a fim de vistoriar as localidades com ocorrência de S. flavius e A. belzebul descritas na literatura e obter registros de novas áreas. Informantes (especialmente agricultores, caçadores, indígenas e funcionários de usinas sucroenergéticas e de fazendas e, eventualmente, técnicos agrícolas e extensionistas) foram selecionados nas vizinhanças dos fragmentos florestais identificados em mapas cartográficos e imagens de satélite. Entrevistas informais, baseadas em um questionário semi-estruturado que visava averiguar o nível de conhecimento do entrevistado sobre as espécies de interesse e a indicação de áreas com presença atual ou pretérita das mesmas, foram realizadas com todos os informantes. Pranchas pictóricas de várias espécies de primatas foram empregadas, quando necessário, para auxiliar na entrevista e permitir o descarte de informantes contraditórios, à semelhança do realizado por Jerusalinsky (2007).
Os fragmentos com indicação de ocorrência de, pelo menos, uma espécie-alvo, foram visitados à procura de indícios diretos (avistamentos) ou indiretos (e.g., fezes, carcaças, vocalizações e pedaços de cana-de-açúcar sobre as árvores). Os fragmentos com confirmação ou indicação confiável da presença dos primatas foram georreferenciados com auxílio de receptor GPS (Global Position System). Estimativas da área desses fragmentos foram obtidas nas entrevistas e confirmadas com auxílio do programa Spring (Câmara et al., 1996) por Silva e Fialho (2013), sempre que possível.
Resultados
Quarenta localidades com presença de Sapajus flavius e/??? ou Alouatta belzebul (22 somente com S. flavius, 11 somente com A. belzebul e sete com ambas as espécies) foram citadas em 247 entrevistas válidas. A ocorrência das espécies foi confirmada em 28% destas localidades por meio de indícios diretos e indiretos (S. flavius= 8/29, A. belzebul= 5/18; Fig. 1 e Tabela 1).
O estado do Rio Grande do Norte possui uma única área de Mata Atlântica com a presença de S. flavius e A. belzebul, a RPPN Senador Antônio Farias (06°26′4″S, 34°58′47″O), a qual atualmente representa o limite setentrional para ambos os táxons no bioma. O estado da Paraíba, por outro lado, concentra o maior número de registros e indicações de presença para ambas as espécies (19 para S. flavius e 10 para A. belzebul).
Os fragmentos ocupados ou com indicação de ocorrência possuem entre 10 e 3,000 ha, cerca de 1/4 dos quais possuem >1,000 ha. A soma de todas as áreas com indicação ou presença confirmada totalizou quase 32,000 ha. A área de ocupação de S. flavius foi estimada em 23.500 ha e a de A. belzebul em 15,600 ha. As espécies ocorrem em sintopia em 4,600 ha. De modo geral, os fragmentos visitados parecem apresentar um risco muito baixo de serem totalmente suprimidos, apesar de serem frequentemente usados como fonte de lenha, subprodutos florestais (e.g., lenha e mel) e/ ou local de caça pela população circundante.
Em relação à proteção legal destas áreas, quatro fragmentos habitados por S. flavius estão localizados em unidades de conservação (UC) e quatro estão inseridos em terras indígenas. Por sua vez, seis fragmentos habitados por A. belzebul estão em unidades de conservação e um se encontra em terra indígena (Tabela 1).
Discussăo
A situaçábo das populações de ambas as espécies no Centro de Endemismo Pernambuco parece bastante crítica. Suas populações estão restritas a poucos fragmentos, em sua maioria, relativamente isolados. Alouatta belzebul pode estar em uma situação mais crítica, pois é a espécie de primata mais caçada na região e parece ocorrer em um número menor de fragmentos florestais. Embora S. flavius ocorra em um maior número de fragmentos, apenas sete deles (24%) apresentam área superior ao mínimo necessário (952 ha), segundo Montenegro (2011), para suportar populações demográfica e geneticamente viáveis em longo prazo. Oliveira e Oliveira (1993) identificaram nove áreas com macacos-prego (S. flavius) na Mata Atlântica da Paraíba, duas das quais (mata do Grotão e mata do Silva, esta última em terras indígenas potiguar as) desapareceram em decorrência de desmatamento para implantação de “roças”. Em relação a A. belzebul foi possível detectar pelo menos uma extinção local em Alagoas (mata da Usina Sinimbu; 9°55′S, 36°08′O; Langguth et al., 1987). Contudo, embora imprecisos no espaço e no tempo, relatos de ocorrência pretérita das duas espécies foram recorrentes. Remetiam, em especial, às décadas de 1970 e 1980, quando da implantação do programa governamental Pró-Álcool que visava o estímulo à produção deste biocombustível.
Embora S. flavius esteja presente em uma UC de Proteção Integral, cabe destacar que a mesma não possui isolamento do entorno, sinalização, infraestrutura e fiscalização. Além disso, residentes vizinhos à UC relatam a eventual captura de animais para uso como animais de estimação ou consumo. Alouatta belzebul, entretanto, dispõe de uma situação ligeiramente melhor em relação à sua presença em unidades de conservação, embora tenha sido registrada em um número menor de fragmentos. Cabe destacar que a população da REBIO Guaribas é, em sua totalidade, produto da liberação de animais translocados e apreendidos (Garcia et al., 2011). Apesar de ambas as espécies estarem presentes em terras indígenas potiguaras, a situação demográfica destas populações é desconhecida.
O presente estudo constitui um marco referencial para proposição de ações para a conservação das espécies, embora não elimine a possibilidade de existirem outras áreas habitadas por estes primatas no CEP. Entre as medidas prioritárias para a conservação de S. flavius e A. belzebul nesta região destacam-se a formação de corredores entre os fragmentos remanescentes, a translocação de indivíduos, a reintrodução e/ou o reforço populacional. Estas ações visariam atenuar os efeitos negativos da endogamia e aumentar a probabilidade de persistência em longo prazo das metapopulações (ICMBio, 2011).
Agradecimentos
Agradecemos o apoio das usinas sucroenergéticas da região que permitiram o acesso às suas áreas, à equipe da Reserva Biológica Guaribas e às pessoas que cordialmente permitiram que seu conhecimento fosse consolidado na presente publicação.